A cozinheira
Edir Nascimento

Desde muito cedo me interesso por cozinha. Na fazenda onde passei a infância, no Mato Grosso, minha mãe me ensinava receitas. Ela ia trabalhar e me delegava os afazeres domésticos. Eu pegava água no poço, acendia o fogão à lenha e fazia bolos de arroz, arroz carreteiro, caças trazidas por meu pai. Cuidava da alimentação de meus cinco irmãos mais jovens, sem me dar conta de que mais tarde eu viveria a maior parte de minha vida dentro de uma cozinha… Mas não como dona de casa.
Pouco mais tarde, na adolescência, eu brincava de restaurante com meus parentes e amigos. Me lembro que fazia pequenos bilhetes onde escrevia os mais variados tipos de alimento e os distribuía. Marcava um dia para uma festa e os convidados apareciam com os mais diversos produtos; eu ia para a cozinha e mostrava meus pratos de aprendiz. Uma data me marcou nesta época… meu aniversário de 15 anos. Resolvi fazer um banquete, que nomeei “Banquete da Meninada”. Matamos um boi e dele fizemos linguiça, churrasco, ensopado… enfim foi uma grande festa coroada por biscoitinhos de nata e licor de erva-doce.
A festa foi inspirada nos rituais de uma aldeia bororo vizinha à fazenda em que eu morava – lugar de onde vieram meus antepassados. Esta aldeia me inspirou na minha vida de cozinheira. Foi lá que aprendi a servir arroz na folha de bananeira, lá que vi pela primeira vez prepararem pinga de arroz, lá que percebi como a comida é essencial para o bem-estar, para a saúde. Sempre que visitava a tribo, ia a casa da Xica Véia e do Cabidé. Ela tinha 120 anos. Ele, um pouco menos. Sempre que falo na Xica, me vem à memória um ensopado de peixe que ela fazia. Em um tacho enorme, colocava peixes inteiros com as tripas, num preparo que durava horas. A base da panela ficava repleta de uma espuma branca, que ela distribuía a toda aldeia em cuias. Não dizia exatamente por que devíamos beber aquilo. No entanto, ninguém contestava a velha sábia.
Me lembro também das saídas para caçadas. Numa ocasião, cheguei a dar alguns passos na mata (escondida) com os caçadores. Em cavalos, concentrados, viram um veado. Em vez de matarem-no, desceram do cavalo e ajoelharam-se. Depois soube que o bicho era sagrado para aquele povo. Era um dos únicos animais que não comiam.
Nem sempre a tribo tinha belas caças. Porém, vez ou outra, conseguiam um bicho grande. Sem mais nem menos faziam uma festa improvisada que varava a noite toda. Numa churrasqueira improvisada, assavam a caça em fogo baixo. Enquanto isso, cantavam, dançavam em volta do fogo e, claro, se alimentavam. O ritual às vezes acabava na tarde seguinte…. indígenas que traziam onças eram considerados deuses pela comunidade. Bravos, guerreiros, protetores…. O felino era colocado inteiro no pau da churrasqueira (sem a pele, é claro) – uma outra imagem que nunca me esquecerei. As carnes nunca eram temperadas, sempre eram malpassadas, adocicadas, de sabor suave.

MINHAS INSPIRAÇÕES

Pouco mais tarde, impressionada por todas estas experiências, fui trabalhar numa casa de família em Poconé, a cidade vizinha à nosso povoado. Meu emprego seguinte, já em Cuiabá, foi em uma marmitaria. Eu começava a me profissionalizar, sem me dar conta.
Certo dia, recebi um convite para trabalhar em São Paulo como cozinheira particular. Conheci uma empresária amante da boa mesa. Ela me convidou a ser sua cozinheira na casa que mantinha no condomínio de Laranjeiras, em Paraty. Falávamos sobre comida e trocávamos receitas o tempo todo. Ela me trazia revistas e recortes de suas viagens ao redor do mundo, traduzia receitas, pedia para que eu reproduzisse um prato que comera em um dos restaurantes estrelados que frequentava. Fazíamos cardápios para banquetes semanais. Me lembro que, para tais festas, descia até a praia e comprava belos e frescos peixes trazidos pelos pescadores da região.

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DOS SENTIDOS

Certo dia, falei a ela que tinha o sonho de escrever um livro de receitas. Fizemos de nossa cozinha um laboratório para experimentos de pratos. Material selecionado, tiramos boas fotos e lançamos o “O banquete dos sentidos», volumes I e II, assinados a quatro mãos, juntamente com Lúcia Faria.

Dez anos em Laranjeiras e fui convocada para um desafio. A patroa estava abrindo um restaurante – o Restaurante – e me chamou para chefiar a cozinha. Não sabia se era realmente capaz de comandar uma grande casa num dos endereços mais prestigiados de São Paulo. Depois de um estágio no hotel Transamérica, aceitei o desafio, e a partir de então dei um mergulho de corpo e alma no mundo da comida de São Paulo, conhecendo chefs, cozinheiros, jornalistas, escritores, entre tantos amigos. Depois veio o restaurante L’Orange, onde também trabalhei como chef. Após uma temporada parisiense, na qual fiz um curso na escola Le Cordon Bleu, trabalhei no Alucci Alucci, que marcou época nos Jardins.
Ao longo de todos estes anos, fui aprendendo, testando novas receitas. |criei uma casa de massas, viajei mais, trabalhei como chef em casa.

 

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DOS SENTIDOS 2

Certo dia percebi que queria e precisava pesquisar, estudar, provar pratos das mais diversas regiões do planeta.… talvez só assim encontrasse a essência de minha cozinha feita sem preconceitos. Me deparei um dia com uma comida globalizada de influência oriental, que acho o máximo. Me fascina tudo o que os povos asiáticos fazem me matéria de comida, a delicadeza de cores e sabores.
Me dá prazer pensar em pratos que você degusta com hashis… as sopinhas acompanhando a refeição, toda a variedade de temperos, o arroz que chega à mesa em bolinhos, sem contar nos peixes servidos em canoinhas, peixes em carpaccio, a raiz forte, todo o ritual para se sentar à mesa… você se descalça, toma saquê numa pequena vasilha, concentrado. Depois vem o ritual do chá e os pequenos detalhes… as toalhas molhadas e mornas para limpar as mãos.
Em seguida, acabei percebendo que minhas pesquisas se direcionavam para minha infância. As vasilhas orientais, por exemplo, eram nada mais do que as cuias de minha infância, as cuias das aldeias do Pantanal. Foi uma descoberta e tanto. Um ritual de beleza! Neste site vou mostrar um pouco de minha experiência como cozinheira, como gourmande, chef… como alguém que dedica sua vida à cozinha.

Boa leitura e bom apetite!

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